Número 352 - Ano 14 |
São Paulo, quarta-feira, 27 de abril de 2016
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«Os anjos e os poetas são os únicos que não riem dos loucos.» (Mario Quintana) *
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Carlos Drummond de Andrade
Amigas e amigos,
Esta edição do boletim surgiu no bojo de uma discussão sobre poesia, travada por e-mail, com o poeta Fernando Campanella, de Pouso Alegre-MG, em outubro de 2014. Numa troca de ideias, acabei escrevendo os comentários abaixo a respeito do soneto "Leão-marinho", de Carlos Drummond de Andrade. Reencontrei o e-mail recentemente e achei que poderia compartilhar aqueles comentários com os leitores do poesia.net.
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Visitemos o "Leão-marinho".
Primeiro, com cerimônia (suspendei, voltai), o poeta anuncia a pesença do leão-marinho — uma criatura inusitada nos mares tropicais.
Num segundo movimento, o poeta diz por que essa cerimônia e também explica o motivo de pedir a atenção de banhistas e pescadores. É um leão-marinho extraviado, perdido. Que faz o animal? Procura saber por que nos lançamos — nós, humanos — a um mar que não existe.
Até agora, a chamada de atenção e o anúncio do leão-marinho eram perfeitamente naturalistas. Mas, quando se trata de saber o que o animal estaria fazendo, surge o primeiro estranhamento. O mar não existe? Talvez o poeta use mar, aí, como símbolo de felicidade, de plenitude.
Deve-se, também, prestar atenção aos parênteses no primeiro terceto. A não existência do mar, de certo modo, está condicionada a certos momentos pessoais do ser humano, como quando a vida lhe dói... Também é de se notar que não é "o mar" que não existe, porém "da terra (...) nos lançamos a um mar que não existe". Um mar.
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O monstro que emergiu do oceano é doce e exala uma forma oprimida de carinho. Isso está dito no segundo quarteto e é reforçado no final do poema. Além de inspirar carinho, o animal espera algo. Aqui o poeta atribui sentimentos humanos ao visitante oceânico e nos torna, cada vez mais, próximos dele. Portanto, não há mais cerimônia. No último verso, a transformação se fecha. O leão-marinho está dentro de nós. E é triste.
Drummond é diabólico nessas passagens abruptas, sem aviso, do rés do chão para a transcendência. Ele adora esses procedimentos, essa mistura do concreto com o abstrato: "Perdi o bonde e a esperança". "Melancolias, mercadorias espreitam-me".
Do ponto de vista formal, "Leão-marinho" é um soneto clássico, decassilábico. As rimas são todas toantes, embora a última seja consoante e banalíssima: existe/triste. Mesmo assim, todo o contexto conduz à riqueza de expressão. Sobre as rimas toantes, tendo a achar que elas são mais sofisticadas e até mais difíceis, uma vez que, de certo modo, são construídas com o intuito de "não rimar". Ou quase isso.
Enfim, tem-se aí um soneto todo escrito em conformidade com as regras clássicas, porém moderno, movimentado, marcado pelas inquietações e angústias existenciais de hoje. Suponho que esse poema (publicado no livro A Vida Passada a Limpo, de 1959) talvez abrigue em si algo de crônica. É provável que tenha partido do verdadeiro surgimento de um leão-marinho em alguma praia carioca. Volta e meia, desorientados, representantes dessa espécie aparecem no litoral fluminense.
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Ainda a propósito da afirmação de que o mar não existe. Creio que o poeta, com esses aparentes atentados à lógica formal, quer chamar a atenção para as outras possibilidades, as estranhezas que se escondem atrás das certezas que estão plantadas como rochedos em nossa cabeça.
Em "Especulações em torno da palavra homem", ele pergunta: "Mas existe o homem?". Pois é. Uma forma de sacudir o leitor (e a si mesmo) dizendo: pense! Certamente, o ser humano — enquanto categoria bem determinada, que seria isso, isso e aquilo — não existe. Esse homem, ou mulher, não existe: é mera abstração.
E atente-se bem: Drummond só introduz essa pergunta ("Mas existe o homem?") ao fim de uma longa série de especulações. Quer dizer, depois de ter mexido em tudo sobre a vida e a morte, a mentira e a verdade. Nesse caso, não dá para dizer que a pergunta é feita de chofre. Ela vem sendo preparada lentamente, em fogo brando, ao longo de 36 tercetos indagativos.
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O leão-marinho dentro de nós
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Carlos Drummond de Andrade
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Alyssa Monks, americana, Miragem (2014)
Leão-marinho
Suspendei um momento vossos jogos na fímbria azul do mar, peitos morenos. Pescadores, voltai. Silêncio, coros de rua, no vaivém, que um movimento
diverso, uma outra forma se insinua por entre as rochas lisas, e um mugido se faz ouvir, soturno e diurno, em pura exalação opressa de carinho.
É o louco leão-marinho, que pervaga, em busca, sem saber, como da terra (quando a vida nos dói, de tão exata)
nos lançamos a um mar que não existe. A doçura do monstro, oclusa, à espera... Um leão-marinho brinca em nós, e é triste.
De A Vida Passada a Limpo (1959)
Alyssa Monks, Despertada (2016)
Alyssa Monks, Despertada (2016), detalhe
Alyssa Monks, Lábios (2008)
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poesia.net www.algumapoesia.com.br Carlos Machado, 2016
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• Carlos Drummond de Andrade "Leão-marinho" In Poesia Completa Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 2003 _____________ * Mario Quintana, "E Quando Se Aproximou a Hora", in Caderno H (1973) _____________ * Imagens: quadros de Alyssa Monks (1977-), pintora americana contemporânea
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